terça-feira, 31 de maio de 2011

Testemunho pessoal...

(Escrevi esse texto em 2009, e publico com algumas modificações, mas ainda corroboro os argumentos apresentados...)

Testemunho para meus amigos - reflexões sobre o especismo (discriminação baseada na espécie) e vegetarianismo

Fui ovo-lacto-vegetariano "radical" (ou seja, não ingeria nenhum animal morto - só ovos não-fecundados, laticínios e produtos de origem vegetal) por cerca de dez anos. Minhas motivações eram principalmente éticas, embora apoiadas por dados científicos. Comprei muitas brigas, mas também "converti" uma boa dezena de pessoas ao vegetarianismo - algumas permanecem fiéis à dieta até hoje.

Deixei o vegetarianismo há alguns anos por uma recomendação terapêutica que hoje considero bastante infundada (não necessariamente falsa, mas não comprovada como parecia ser) de que pessoas do meu tipo sanguíneo (O) por razões x e y precisavam da ingestão de carne vermelha. Falei para o terapeuta que eu me recusava a comer vacas e porcos, mas que tentaria comer peixes e aves. Superando a repulsa natural de um organismo que abandonou o carnivorismo, consegui, aos poucos, voltar a me alimentar de "cadáveres de animais"...

Não preciso dizer que não vi absolutamente nenhuma vantagem (mas um monte de desvantagens!), durante esses anos todos, em comer carnes, exceto a facilidade em me "misturar" com outras pessoas carnívoras em refeições coletivas e em encontrar comida em restaurantes - é incrível como os carnívoros gostam de colocar carne em tudo (até no arroz e em saladas de verduras!!!). A outra vantagem - que só um vegetariano entenderia - foi parar de ouvir piadas e de ser ridicularizado em público!

Mesmo sendo brincadeira, e nem sendo mais eu estritamente vegetariano, considero de mau gosto, fazer piadas ridicularizando as motivações éticas para o vegetarianismo, porque é uma insensibilidade ignorante e perigosa diante de um dilema ético muito importante de nosso tempo. Por exemplo: "cadáveres de animais - como você, vegetariano, chama - são uma delícia, especialmente cozidos ou assados, (risos)..." Para um vegetariano consciente (não alguém que só está seguindo uma dieta da moda para emagrecer), seria quase como dizer: prefiro comer crianças e deficientes mentais bem cozidos, do que crus. Nesse caso, a brincadeira não pareceria grotesca?  Pois é assim que ela pareceria aos ouvidos de um vegano... Gostaria de ver argumentos mostrando a diferença ética entre devorar crianças ou outros seres sencientes indefesos e devorar animais não-humanos, argumentos que não apelem para religiões antropocêntricas...

Fora da recomendação pseudodivina, de que os animais não-humanos foram "criados" (diga-se de passagem, por um "deus" à imagem e semelhança do ser humano...) para nos servir, com suas peles, sua força ou sua carne, não há justificativa para o holocausto planetário que ocorre há milhões de anos. Qual a justificativa? Somos mais espertos? Somos superiores? Bem, as mesmas coisas podemos dizer de crianças ou deficientes mentais, não podemos? Ah, diriam talvez: mas nesse caso são seres humanos!! Eu responderia: e daí? Não entendo logicamente porque o mero apelo ao seu status de homo sapiens é uma evidência automática de sua superioridade... Ou será que os humanos são melhores e mais importantes simplesmente porque nós somos humanos, e o nosso time (partido/religião/orientação sexual/etc.) é sempre o melhor? Resumindo, não conseguimos justificar, não é?

Vamos colocar assim: imagine se, no jogo da seleção natural, outra espécie, além da nossa, tivesse desenvolvido um nível muito mais avançado de inteligência ou tivesse habilidades superiores às humanas (como, em nosso caso, temos em relação aos não-humanos: andar ereto, ter um polegar oposto aos outros dedos da mão, habilidades linguísticas refinadas, etc.)... Isso justificaria moralmente que essa outra espécie nos escravizasse e cultivasse em rebanhos para usar nossa carne, nossa pele ou nossa força bruta, ou nos usasse para pesquisa científica, abrindo nossos corpos sem anestesia enquanto estamos vivos e conscientes por horas? Não justificaria? Por qual razão mesmo? Claro que isso seria particularmente hediondo se ficasse comprovado que essa hipotética espécie nem sequer precisasse se alimentar de seres humanos!

A ciência já mostrou que os animais são mais do que meros bifes ambulantes ou espécies de "máquinas vivas" sem autoconsciência, como acreditava Descartes e pregam as religiões ocidentais. Algo que toda pessoa que cria um animal doméstico sabe: os animais não-humanos têm emoções, sentem dor e têm consciência (fazem escolhas, trocam informações complexas e têm personalidades peculiares).

Há décadas (pelo menos desde a década de 70), sabemos que muitos animais não-humanos são racionais e capazes não só de linguagem mas também de resolver problemas complexos e criar ferramentas novas, sem falar no fato de que eles sentem emoções (inclusive pânico diante da sua própria morte e angústia ao observar a morte de entes queridos - alguns inclusive pranteiam seus mortos em fascinantes rituais mesmo quando os cadáveres destes já estão reduzidos a ossos, como é o caso dos elefantes) e alguns dão clara demonstração de autoconsciência, entabulam conversas inteligentes entre si (golfinhos) e compõem complexas, originais e demoradas peças musicais a cada ano (baleias). Caso queiram pesquisar, tenho farto material científico a respeito da inteligência animal - a ciência que estuda o comportamento e a inteligência de nossos parentes darwinianos é chamada de etologia.

Pois bem, acredito firmemente que uma pessoa razoável só come carne sem peso na consciência se for ignorante dessas informações ou, tendo as informações, não refletiu sobre as consequências éticas de seu ato, excetuando-se, claro, os que não têm alternativa por viverem em locais extremos (como o povo Innuit ou outros que moram em locais onde não há vegetação comestível).

A lenha para a fogueira dessa controvérsia tem a ver com nossa suposta necessidade de consumo de carnes! Para mim, esse debate está totalmente ultrapassado por dois motivos: o estudo de nossa anatomia e fisiologia (humanas) diferem radicalmente de espécies realmente carnívoras (que têm diferenciações digestivas importantes para processar a carne ingerida) ou mesmo onívoras, e o fato de que mais de um terço da população humana mundial vive dietas primaria ou exclusivamente vegetarianas há milênios. Mesmo a maioria dos médicos e nutricionistas, habitualmente tendenciosos na defesa de seu carnivorismo, dão o braço a torcer ao admitir que é melhor consumir pouca carne!! Sem falar que todos os nutrientes de que precisamos podem ser fartamente encontrados no reino vegetal... Trata-se apenas de uma questão de nutrição balanceada. (Ninguém está sugerindo que se deixe de comer carne e passe a comer mal, mas que passe a comer melhor ainda!).

Para encerrar, em resposta a outra frequente piada do sempre falacioso senso comum: "daqui a pouco, vão dizer que tudo causa câncer, até os vegetais!", nunca ouvi dizer que vegetais comestíveis, pelo menos os cultivados organicamente, causem doenças, a não ser em pessoas que tenham alguma intolerância geneticamente herdada.


 E, além disso, em resposta a outra crítica que ouvi dezenas de vezes, comer vegetais não é crueldade, pelo menos não no mesmo sentido que matar animais para comer. Essa é a mais estúpida das falácias, usada até à exaustão em tom de ironia, pelos humanos carnívoros, que, via de regra, não estão nem um pouco preocupados com essa ou aquela crueldade, mas com ridicularizar os veganos. O ponto óbvio é que não temos, enquanto humanos, alternativa dietética no caso da ingestão de vegetais (diferente do caso da ingestão de animais!), e, até onde eu saiba, vegetais não têm sistema nervoso nem cérebro para sentir dor ou desenvolver consciência no sentido como conhecemos.

Atualmente, é raro eu tocar nesse assunto com quem quer que seja, sem que tenha sido solicitado a fazê-lo por alguém sincero. As pessoas simplesmente não têm interesse ou temem pensar sobre esse assunto. Também há tanta desinformação e preconceito envolvidos que alguns indivíduos têm uma forte reação emocional a respeito, se tornam agressivos e não conseguem pensar com clareza. Mas, tenho a esperança de que a postagem em um blog deixe a informação disponível para quem está pronto para processá-la.

Reflexões sobre o especismo...

Qual é mesmo a diferença entre cães/gatos e vacas/porcos/aves/etc., quando se trata de merecerem nosso amor ou nos importarmos com seu bem-estar? Nossa cegueira?

Quando vamos nos render às evidências (inclusive com abundante documentação científica!) de que muitos animais não-humanos são inteligentes, capazes de raciocínio (sim! já sabemos disso há décadas: sem treino prévio, fazem contas, resolvem complicados quebra-cabeças, usam linguagem para ensinar tarefas a outros, improvisam ferramentas para conseguir alimento - e não estou falando só de animais altamente inteligentes como chipanzés, elefantes e golfinhos, mas também de aves e roedores!), capazes de sentir dor física e emocional como nós (imaginem uma vaca vendo os filhos sendo cruelmente abatidos por conta de sua carne tenra, ou os filhotes vendo isso acontecer com os pais - eles literalmente choram de dor!), etc?

Ficamos chocados com crueldade contra crianças, mas a maioria dos animais torturados durante toda sua vida e cruelmente mortos para alimentar nosso excêntrico paladar são capazes de raciocínio equivalente ou superior às nossas crianças humanas. Além disso, sentem medo, dor, angústia, luto, pânico, stress, etc. Por que com crianças humanas ficamos chocados e com animais (e seus filhotes) não? Pensem.

Estamos falando de seres autoconscientes. Existem testes muito convincentes para se determinar isso. E mesmo os que não sabemos com certeza se são autoconscientes, são certamente capazes de sentir dor (têm nervos, cérebro, gritam e desmaiam de dor, etc.). Você sabe o que é sentir dor? Por que não liga para a dor do animal sendo torturado lentamente e morto de maneira cruel? Se refletirmos sobre nossa atitude, não me parece muito diferente da do psicopata que não consegue se importar com a dor de sua vítima. A vítima está sentindo uma coisa chamada "dor", mas isso não é algo com que ele se identifica. Essa "dor" do outro lhe é estranha, não tem nada a ver com a dor que ele, o psicopata, o torturador da ditadura militar, o nazista, é capaz de sentir.

Para os que acham que isso é catequização, reflitam. A catequização subestima sua capacidade de raciocinar por si mesmos. É o que a cultura e as religiões dogmáticas fazem conosco. Aqui apresentamos subsídios para raciocínios. É o que a ciência e a filosofia fazem. DES-catequizarem a gente.

Gostamos de nos colocar como a espécie mais importante do planeta. Mas, isso do ponto de vista de quem? do nosso, claro! Se fizermos um esforço de imaginação e nos colocarmos do ponto de vista do ecossistema, da complexa rede de espécies ou mesmo de algo como o próprio planeta, o que seria mais vantajoso para eles: que a espécie humana tivesse aparecido ou não no jogo da seleção das espécies?

Food for thought... Material para reflexão, não?

(Apesar do tom emocional desta mensagem, existe farto material científico e ético para quem aceitar o desafio da reflexão. E se alguém quiser discutir o assunto objetivamente, também estou à disposição...)